A garotinha corinthiana em Ribeirão Preto correu risco de vida — essa deveria ser a manchete

Diogo A. Rodriguez
3 min readFeb 19, 2024

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Foto: Daniel Augusto Jr. / Ag. Corinthians

Todo mundo ficou sabendo da garotinha que gritou “aqui é Corinthians!” e bateu no peito no meio da torcida do Botafogo de Ribeirão Preto, durante jogo do Campeonato Paulista. Ela e sua família foram hostilizadas pelos botafoguenses porque torciam pelo Timão. Tiveram de ser protegidos pela Polícia Militar e por seguranças do Corinthians, que levaram todos para o camarote onde estava o presidente Augusto Melo.

Não foram poucos os posts que vi celebrando a coragem da garota, de nove anos. Alguns disseram que ela “representou”, que “honrou” a camisa do clube, que ela “entendeu o que é ser Corinthians”. De fato, a cena é inusitada. Uma criança se posicionando de maneira veemente frente ao perigo de estar cercada de marmanjos irritados por ela ter comemorado um gol de Ángel Romero é incomum.

Mas será que deveríamos mesmo celebrar a garotinha? Não que ela tenha feito algo errado. Ela simplesmente encarnou aquilo que se apregoa nos círculos corinthianos, de que devemos defender nosso clube, ser apaixonados e raçudos. O que questiono é o fato de acharmos normal que uma família de corinthianos, com crianças pequenas, tenha sido exposta, no mínimo, ao risco de apanhar.

O Botafogo de Ribeirão Preto lavou as mãos e disse que a família se arriscou porque foi assistir ao jogo nas numeradas do estádio — e que não deveriam, porque não há mistura de torcidas no local. Lembro de quando eu era criança e meu pai, palmeirense, me levava a jogos do Corinthians. Chegamos a ver dois dérbis no Pacaembu, sentados nas numeradas. Ali, se misturavam corinthianos e palmeirenses. Não vi nenhuma briga ou mesmo discussão.

Cheguei a me sentar ao lado de palmeirenses no segundo jogo da final do Torneio Rio-São Paulo de 1993

Cheguei até a me sentar ao lado de palmeirenses no segundo jogo da final do Torneio Rio-São Paulo de 1993. O Palmeiras ganhou o título em cima do Corinthians para meu desespero. Chorei. Meio bêbados e felizes, meio compadecidos comigo, os palmeirenses ao meu lado tentaram me animar agitando minha bandeira do Corinthians.

O que aconteceu? Por que agora celebramos uma menina de nove anos, idade que eu tinha em 1993, se impondo frente às perigosas hostilidades de torcedores que não são apenas adversários, mas inimigos. Sim, eu sei que a violência nos estádios era um problema naquela época e continua sendo agora. No entanto, me choquei ao simplesmente não ver nenhum jornalista, repórter, comentarista ou influenciador questionar a violência enorme do ocorrido.

Não vi isso dito, portanto direi eu: não é concebível que pessoas corram risco de vida por simplesmente estarem dentro de um estádio de futebol torcendo por uma equipe diferente. E é um absurdo tratar a garotinha como uma heroína ou representante do tal espírito corinthiano. Admitir isso sem reconhecer o absurdo da situação em primeiro lugar é aceitar a selvageria a que nos subtememos.

Essa garota não deveria ter sido sujeita a tal situação em primeiro lugar. O subtexto da cobertura do caso deixa claro que era esperado e talvez razoável que os torcedores do Botafogo reagissem daquela maneira. Então, foi “admirável” ver uma criança tentar se impor frente a uma tropa de adultos. Toda essa situação está errada e foi absurda.

A manchete não deveria ter destacado que a menina bateu no peito e disse “aqui é Corinthians!”. E sim que uma família foi ameaçada em um estádio de futebol e teve de ser escoltada pela PM e por seguranças. Desistimos de qualquer civilidade. Justificamos o injustificável apenas para gerar mais entretenimento — como se precisássemos disso.

Fico triste pela garotinha porque vejo que ela não teve a mesma oportunidade que eu tive, de conviver com torcedores adversários, de ver meu time em um jogo com as torcidas dividindo o estádio. Pior, ela tentou se proteger do jeito que sabia, apelando à máxima da raça corinthiana. Só que isso não era o suficiente. Por alguns instantes, ela correu um sério risco.

Esse episódio mostra que o cinismo realmente venceu, espero que provisoriamente. Mas enquanto nosso foco estiver na coragem da garota — e não no risco que ela correu — , continuaremos a insistir no erro de abrir mão da civilidade e da convivência para normalizar a bárbarie. Triste.

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Diogo A. Rodriguez
Diogo A. Rodriguez

Written by Diogo A. Rodriguez

jornalista, criador do meexplica.com, especialista em #tecnologia #ciencia #politica #democracia

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