A inovadora estratégia do Intercept Brasil para cobrir a #VazaJato

Desde o seu nascimento, a versão brasileira do The Intercept tem se dedicado a cobrir a política do nosso país do ponto de vista do jornalismo investigativo. Sua missão tem sido muito clara desde o início: fiscalizar os poderosos por meio de reportagens extensas.
Não foi surpresa, portanto, quando Glenn Greenwald anunciou que ele e sua equipe haviam recebido arquivos relacionados à Operação Lava Jato, a mais importante e mais controversa investigação sobre corrupção na história do Brasil. O Intercept Brasil iniciou sua série de artigos em 9 de junho, numa noite de domingo, revelando que o mais notório juiz ligado à operação, Sergio Moro, havia assessorado os promotores da força-tarefa.
Esta notícia é explosiva para a política e o Direito. É ilegal, de acordo com a Constituição do nosso país, que o juiz se comunique ou troque qualquer tipo de informação com a acusação ou a defesa. Além disso, Moro é agora o ministro da Justiça do Brasil, nomeado pelo presidente Jair Bolsonaro. Existe uma possibilidade real de que os casos de Moro sejam anulados. Mais especificamente, a condenação do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, que está preso há mais de um ano.
Ensaios podem ser escritos sobre todas as implicações legais e políticas que este caso tem, mas vou me limitar a comentar a engenhosa estratégia que o Intercept Brasil elaborou para publicar as histórias. Até agora, pelo menos nove artigos foram publicados. Esse é o principal assunto da cobertura política nacional.
O primeiro golpe no juiz e nos promotores
Quando a primeira revelação foi publicada, as pessoas envolvidas não negaram que o que a Intercept Brasil tem era verdade. Deltan Dallagnol (o mais proeminente promotor) e Sergio Moro condenaram o que viram como uma invasão de sua privacidade. Foi só depois de alguns outros artigos que expuseram sua conversa no aplicativo de mensagens Telegram que eles começaram a usar a estratégia de sugerir que o conteúdo poderia ter sido adulterado. Ao mesmo tempo, eles começaram a usar a palavra “hacker” para descrever a fonte que fornecia o material a Greenwald e sua equipe.
Se você tem acompanhado a política brasileira nos últimos anos, sabe que era previsível que não apenas as pessoas expostas, mas seus defensores nas redes sociais reagissem às revelações, muitas vezes de maneira desonesta. Na primeira semana após o primeiro artigo do The Intercept, alguns usuários de mídias sociais começaram a sugerir que Greenwald fosse deportado do país (ele mora aqui desde 2002, é casado com um brasileiro e tem dois filhos brasileiros).
Então, mais recentemente, um perfil no Twitter espalhou boatos sobre David Miranda, com quem Greenwald é casado, acusando-o de comprar seu mandato de deputado. Miranda substituiu Jean Wyllys, eleito no ano passado, que decidiu deixar o país devido a ameaças de morte. No geral, aqueles que são ferozes defensores de Bolsonaro, da Lava Jato e Sergio Moro rejeitaram completamente as revelações e as taxaram de falsas e criminosas, uma ação de supostos hackers.
Tendo dito tudo isso, entrar em detalhes da estratégia que a equipe da Intercept Brasil elaborou para não apenas abordar as críticas, mas também para respondê-las usando mais fatos e mais revelações.
A estratégia da The Intercept Brasil
A série Vaza Jato não apenas expõe erros do juiz Moro e da acusação, mas também usa a mesma estratégia que ambos usaram para expor aqueles que eles estavam investigando. Deixe-me explicar.
Não vou entrar em todos os detalhes da cronologia da Lava Jato. Em vez disso, usarei um caso emblemático para ilustrar como a força-tarefa agia. Em 16 de março de 2016, a então presidente Dilma Rousseff nomeou o ex-presidente Lula como seu chefe de gabinete. Rousseff estava enfrentando a ameaça de impeachment e Lula tinha sido o alvo principal da operação por vários meses. O grupo de trabalho forneceu semanalmente documentos, trechos de acordos de delação premiadas e outros materiais à imprensa, na esperança de obter apoio da opinião pública e enfraquecer o capital político de Lula. Com sucesso, devo acrescentar.
Uma cerimônia em Brasília tornou oficial: Lula agora fazia parte do governo de Dilma. Foi uma tentativa de salvar seu governo e talvez deter a crise política que o Brasil vivia desde 2014. Poucas horas depois, na hora do jantar, o Jornal Nacional (o mais importante telejornal do país) colocou no ar uma gravação de um telefonema entre Lula e Dilma. A conversa parecia sugerir que o propósito de indicá-lo teria como fim proteger o ex-presidente das investigações.
Isso foi uma bomba no mundo político. Todos estavam debatendo se o telefonema revelado pelo JN evidenciava uma tentativa de obstruir a justiça ou não. Dois dias depois, a Suprema Corte suspendeu Lula do cargo para que investigações sobre a obstrução da Justiça pudessem ser conduzidas.
O que este exemplo mostra? Que a equipe Lava Jato estava coordenando sua investigação com os movimentos no tabuleiro de xadrez político. Esta não foi a única vez em que isso aconteceu. Depois, ficamos sabendo que a gravação era ilegal. Moro não teve autorização da Suprema Corte para entrar em contato com Dilma (o que é exigido por lei quando você está investigando um presidente). Além disso, Moro havia se aproveitado de um pedido legal que ele havia feito para grampear telefones para estender a ação além do limite de tempo que ele tinha permissão para fazê-lo.
Além de fornecer os áudios para o Jornal Nacional, o Lava Jato também divulgou muitas outras conversas de Lula e sua família que não tinham relação alguma com as investigações. Conversas privadas. Moro defendeu a divulgação desses áudios como forma de expor os poderosos e passarem pelo escrutínio público.
Provando do próprio remédio
Bem, isso é exatamente o que a Intercept Brasil vem fazendo. Cada novo artigo não traz apenas uma nova revelação. Os jornalistas analisam as reações e respostas de Moro e Dallagnol e respondem a isso em cada nova matéria. Um bom exemplo aconteceu na semana passada. Moro foi convidado para uma audiência no Senado e negou que tenha aconselhado os promotores de alguma forma. Em uma das conversas vazadas, ele reclama com Dallagnol que uma promotora era muito ruim em audiências e algo deveria ser feito. Aos senadores, Moro disse que não havia nada de errado com isso e que a prova era que a promotora criticada permaneceu no grupo de trabalho.
Poucos dias depois, em parceria com o comentarista político Reinaldo Azevedo, o Intercept revelou que os promotores retiraram a colega que desagradou a Moro das audiências no caso de Lula. E eles conversaram sobre isso com base na mensagem que o juiz havia enviado anteriormente. O argumento aqui é que as “sugestões” de Moro foram prontamente aceitas, o que é ilegal.
Outro aspecto da estratégia do The Intercept é algo que Greenwald já havia feito com as revelações de Edward Snowden. Ele fez uma parceria com outros veículos para não apenas publicar as matérias, mas também compartilhar os materiais. Isso tem sido muito importante na Vaza Jato porque o material foi checado por outros profissionais. Nas mídias sociais e nos veículos que simpatizam com Moro, as mensagens estão sendo questionadas e apontadas como falsas. Eles argumentam que, como ninguém além do Intercept teve acesso ao material, ele pode ter sido manipulado.
Ao se associar com outros jornalistas e dar-lhes acesso aos vazamentos, o The Intercept Brasil garante que seja verificado fora de sua própria organização. O já mencionado Reinaldo Azevedo foi o primeiro a publicar um artigo baseado nas mensagens. Hoje, a Folha de S.Paulo foi o segundo. O brilhantismo dessa estratégia é que ela legitima toda a investigação, atende a outros jornalistas interessados em relatar o caso e fortalece o ecossistema do jornalismo.
Além disso, Greenwald, Leandro Demori e outros membros da equipe do The Intercept Brasil deram entrevistas para explicar o caso e divulgar sua cobertura. Eu pessoalmente não me lembro de nenhum jornalista fazendo isso no passado ou no presente recente. Greenwald foi até mesmo ao Pânico, um programa de comédia muito popular entre a classe média brasileira, algo impensável para os jornalistas brasileiros.
Adaptando-se às novas formas de consumo e distribuição da informação
O que estou tentando dizer é: A Intercept Brasil está inovando na maneira de publicar e distribuir suas importantes revelações. Em vez de publicar um monte de artigos e materiais de uma só vez, eles entenderam que o fórum público de opiniões (como diria a teórica política Nadia Urbinati) é muito diferente hoje em dia. Agora, mais do que nunca, precisamos trabalhar com essas novas dinâmicas e ter estratégias que levem em consideração o que acontece em tempo real.
Na minha opinião, a força-tarefa da Lava Jato provou do próprio remédio. Eu não estou julgando sua estratégia dela como ruim ou boa como um todo (embora eu seja crítica de seus erros e ilegalidades). Mas agora eles estão enfrentando um escrutínio público que é imprevisível. Cada passo deles está sendo observado pelo The Intercept Brasil e qualquer coisa pode e será usada contra eles. Até agora, Greenwald usou isso com o máximo rigor jornalístico, algo que devemos aplaudir.
A Vaza Jato pode ser o sinal de um novo começo para o jornalismo no Brasil e em todo o mundo. Há muitas lições que já podem ser aprendidas e muitas outras que estão por vir.
Você pode ler toda a série Vaza Jato aqui: https://theintercept.com/2019/06/09/editorial-chats-telegram-lava-jato-moro/