Como pensar sem medo e escrever com coragem

Diogo A. Rodriguez
4 min readNov 21, 2023
George Orwell foi criticado quando publicou "A revolução dos bichos" e seus relatos sobre a Guerra Civil Espanhola, na qual lutou

Quando George Orwell lançou "A revolução dos bichos", segundo ele conta, seu livro foi visto como inconveniente. A Inglaterra estava envolvida em um pequeno conflito conhecido como Segunda Guerra Mundial, e os Aliados ainda lutavam para derrotar um certo Hitler o Eixo.

A União Soviética era parte do grupo de países que tentava parar o avanço do fascismo, como bem se sabe. E, se você não leu "A revolução dos bichos", ele conta a história de uma rebelião em uma fazenda, uma crítica cifrada (mas não tanto) aos rumos que a revolução de 1917 tomou na Rússia, especialmente sob o comando de Stálin.

Orwell conta que o livro havia sido recusado por quatro editoras antes de sua publicação. O motivo, de acordo com ele, era o fato de a história poderia incomodar os russos, aliados tão essenciais naquela guerra cruel que era travada na Europa inteira. Defensores de Moscou na Inglaterra ficariam potencialmente ofendidos com o teor do livro.

O escritor diz que se pisava tanto em ovos em relação aos russos que era mais fácil criticar Churchill do que Stálin naquele momento.

Dilema semelhante ele relata em outro momento, quando publicou seus relatos sobre a Guerra Civil Espanhola. Aqueles que presenciaram o conflito, como Orwell fez, testemunharam uma segunda guerra, para além do sangrento embate entre a República e os Nacionalistas, liderados por Francisco Franco. Sim, havia uma disputa dentro da esquerda.

O grupo ligado à União Soviética queria primazia na liderança dos republicanos, que gerou brigas. Mais do que isso, houve até um conflito armado entre as duas facções. Uma guerra dentro da guerra. No entanto, relatar esse fato foi malvisto, uma vez que poderia gerar a impressão (verdadeira) de que a esquerda estava dividida, enfraquecendo a causa republicana na Espanha.

Mais informação, menos religião

Ambos exemplos são ilustrativos do beco sem saída em que jornalistas, analistas e pensadores podem se encontrar a qualquer momento. As conveniências políticas da ocasião podem ditar que é melhor não abordar certos assuntos em certos momentos, sob a pena de comprometer algum objetivo maior.

"Não é o momento de discutir isso", dirão uns. "Não é conveniente falar daquilo", outros defenderão. Dizer a verdade vai para o segundo plano e emplacar uma visão ou narrativa específicas se torna a prioridade. Já viu esse filme antes?

Os que tentam romper esse "acordo" são acusados de oportunismo, de terem más-intenções ou de serem alienados. Para mim, esta é a pior das acusações porque coloca a pessoa em questão numa posição de descompromisso; você vira um "idiota" no sentido original do termo, um ignorante que não consegue olhar ao seu redor e compreender o mundo.

Nada disso pode ser dito de George Orwell, que não só estava na Espanha para lutar contra os fascistas — pegando em armas, vejam bem — , como levou um tirou no pescoço que por pouco não o matou. Longe de ser "isentão". Foi lá, aliás, que ele testemunhou toda a briga das esquerdas presentes nas fileiras republicanas.

Mas nada disso adiantou. Orwell foi criticado nas duas situações (quando escreveu "A revolução dos bichos" e quando relatou o que viu na Catalunha) por ousar sair do tom, por não tocar a mesma música que a banda tocava. E creio que se pode dizer sem medo de errar que a União Soviética merecia as críticas de Orwell no livro de ficção. E que relatar os fatos ocorridos na Espanha era algo necessário e que ajudou a compreender alguns dos porquês dos desobramentos trágicos daquela guerra.

Orwell não foi o primeiro a passar por isso, tampouco será o último. Em momentos de alta voltagem política, os fatos, as críticas e os relatos bem embasados não interessam. O importante é encontrar aquilo que se encaixa na grande narrativa da vez; o que está fora desse quebra-cabeça é considerado uma ameaça.

Em vários de seus textos, Orwell fala em "honestidade intelectual". Que é um princípio talvez um pouco difuso, mas que cabe perfeitamente aqui. Trata-se de não se curvar a conveniências políticas em sacrifício dos fatos. Esse é o papel do jornalista, que Orwell era, mas também de qualquer pessoa que exerça atividades intelectuais de maneira pública: escritores, poetas, debatedores, analistas, comentaristas, etc.

“Para escrever usando uma linguagem simples e vigorosa, é preciso pensar sem medo, e se alguém pensa sem medo, não pode ser politicamente ortodoxo”, diz Orwell.

Ter medo é deixar de dizer algo para não acirrar os ânimos dos coleguinhas. Ter medo é condicionar os fatos aos objetivos políticos e fingir que isso não tem problema. O jornalismo é particularmente afetado por essa sinuca de bico, claro. Quando ele abdica de sua missão, ele foi cooptado. Se tem medo de chatear, já não é mais jornalismo, mas apenas um peão no jogo político do dia a dia.

Orwell queria fugir desse destino e sua escrita refletiu isso. Ele acreditava na missão de relatar a verdade e pensar de maneira honesta, mesmo que falhasse. Para mim, isso é nobre e cada vez mais necessário. Se tudo vira questão de narrativa, então não temos mais informação e sim, religião.

***
Para saber mais, leia Orwell on Truth, livro com trechos selecionados de textos do escritor sobre a ideia de verdade.

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Written by Diogo A. Rodriguez

jornalista, criador do meexplica.com, especialista em #tecnologia #ciencia #politica #democracia

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