Jornalismo, uma profissão de fé (e valores)

Diogo A. Rodriguez
6 min readJan 22, 2025

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Desde 2019, sou professor convidado da pós-graduação Mídia, Política e Sociedade, da FESPSP — Fundação Escola de Sociologia e Politica de São Paulo. Ministro o curso Empreendedorismo Multimídia, onde não apenas apresento as principais tendências de negócios no jornalismo, mas também coloco os estudantes para experimentar na prática, utilizando ferramentas como Proposta de Valor e Canvas de Negócio.

Sempre acreditei que minha função era, acima de tudo, ensinar conceitos e estratégias. Mas, com o tempo, percebi que o que realmente marca os alunos vai além do conteúdo. Tento mostrar uma visão de mundo — que não é necessariamente a única ou a melhor, mas que, no meu caso, é realista. Sou um jornalista apaixonado pelo que faço, e esse apreço pela profissão transparece, mesmo que o foco do curso não seja esse.

Recentemente, tive uma prova de como essa paixão pode ser tão relevante quanto o próprio conteúdo.

Uma aluna da minha primeira turma, de 2019, me procurou para um café. Durante a conversa, ela me disse que gostou da disciplina e dos temas abordados, mas que o que realmente marcou sua experiência foi ver o quanto eu acreditava no jornalismo. Ela me contou que, na época, estava atravessando uma crise profissional — algo que, como sabemos, é quase um rito de passagem na área. E que, ao ouvir sobre as minhas próprias crises (que não foram poucas), sentiu-se menos sozinha. Isso, segundo ela, ajudou-a a seguir adiante, apesar das inevitáveis decepções.

Não costumo me elogiar aqui — nem em qualquer outro lugar –, mas o que essa ex-aluna, hoje amiga, me disse reforçou algo que sempre acreditei sobre o jornalismo e, de maneira mais ampla, sobre a vida profissional. Sermos racionais é essencial para analisar os fatos com clareza e não nos deixarmos levar por emoções momentâneas. Mas há uma linha tênue entre o ceticismo necessário e o cinismo corrosivo. E sei que muitos jornalistas acabam caindo no segundo — não sem motivo. Nossa profissão nos expõe ao pior da sociedade, desmistifica heróis, destrói narrativas confortáveis. Ainda assim, jornalismo não pode ser só desencanto. Ele exige um olhar que vá além.

É ingenuidade achar que o jornalismo, sozinho, pode mudar o mundo. Mas é preciso lembrar que ele compartilha valores com a democracia, os direitos humanos e a ciência. E valores importam.

Não falo aqui de moralismo, mas da ideia de que, assim como a democracia não é apenas um conjunto de regras e procedimentos — como argumenta a cientista política Nadia Urbinati –, o jornalismo também não se resume a técnicas e boas práticas.

Liberdade política

Urbinati explica, no seu seminal livro “Democracy disfigured”, que a democracia se sustenta sobre um princípio essencial: a liberdade política. A partir desse valor, diferentes sociedades constroem seus próprios modelos democráticos, mais ou menos distantes desse ideal.

Por isso, ela mostra, a democracia pode ser “deformada” quando perde sua capacidade de mediar e estruturar a participação política. Urbinati identifica três maneiras principais pelas quais isso acontece. O populismo reduz o debate à autoridade carismática de um líder; a tecnocracia descarta a deliberação democrática em favor de decisões técnicas e supostamente neutras; o plebiscitarismo transforma o engajamento público em uma sucessão de aprovações superficiais.

O jornalismo, quando feito de maneira responsável, é um dos principais mecanismos que ajudam a evitar essas distorções. Ele oferece o espaço para a pluralidade de vozes e protege a liberdade política ao permitir que opiniões sejam formadas em um ambiente de debate, não de manipulação.

Esse papel do jornalismo se conecta com um conceito essencial na teoria de Urbinati: o fórum de opiniões. Ela argumenta que a democracia não é apenas um processo de tomada de decisões, mas um sistema no qual a opinião pública se constrói de maneira coletiva e contínua. Componente essencial da liberdade política é a possibilidade de debater, trocar informações, opiniões e argumentos para chegar a consensos democráticos.

Organizando a esfera pública

Nesse sentido, o jornalismo não é apenas um transmissor de informações, mas um dos organizadores da esfera pública, ajudando a estruturar os debates e a dar sentido às questões fundamentais da sociedade.

Aqui entramos no que Bill Kovach e Tom Rosenstiel definem como o papel essencial do jornalismo na sociedade no livro “Os elementos do jornalismo”. Para eles, o primeiro compromisso do jornalista é com a verdade. Mas essa verdade não é um ponto fixo e absoluto — é um processo contínuo de verificação.

O jornalismo não trata apenas de reportar fatos isolados, mas de construir uma narrativa informativa baseada na apuração rigorosa, no contexto e na transparência. Esse compromisso impede que o jornalismo se torne mero entretenimento ou propaganda, mantendo sua relevância na construção de um espaço público saudável.

Outro princípio fundamental apontado por Kovach e Rosenstiel é a lealdade do jornalista ao público. O jornalismo não pode servir a governos, anunciantes ou qualquer outro grupo de interesse. Sua função primordial é informar os cidadãos de maneira independente. Em tempos de crise de confiança na imprensa, esse princípio se torna ainda mais crucial: se o público perceber que o jornalismo está a serviço de interesses particulares, sua função de mediação e fiscalização se enfraquece.

E isso nos leva a um dos papéis mais essenciais do jornalismo: ser um fiscal do poder (watchdog). Kovach e Rosenstiel argumentam que essa função vai além da simples denúncia de escândalos. Trata-se de manter uma vigilância constante sobre aqueles que detêm poder e influência, garantindo que a informação circule de forma transparente. Em tempos de desinformação e concentração midiática, essa função do jornalismo se torna ainda mais essencial para o equilíbrio democrático.

O debate democrático exige diversidade de perspectivas, e cabe ao jornalismo proporcionar esse espaço. Se a imprensa falha nessa função, a democracia se enfraquece, pois perde sua capacidade de articular opiniões informadas.

Urbinati argumenta que a democracia depende de um espaço público pluralista e bem informado, no qual as opiniões possam se formar e se transformar continuamente. Mas esse espaço não se sustenta sozinho; ele precisa de instituições que garantam sua integridade, e o jornalismo é uma delas.

Valores fundamentais

É nesse ponto que as reflexões de Kovach e Rosenstiel se tornam fundamentais: se Urbinati nos mostra que a democracia não é apenas um conjunto de regras, mas um processo baseado na circulação de ideias e informações, Kovach e Rosenstiel explicam como o jornalismo deve atuar para proteger essa dinâmica.

O jornalismo não é apenas uma maneira de retratar a realidade, mas um dos organizadores do debate público, um fiscal dos poderosos e um mediador entre fatos e cidadãos. Sem um jornalismo comprometido com seus princípios fundamentais, o espaço público corre ainda mais riscos de ser distorcido por desinformação, manipulação e interesses privados — ameaçando a própria estrutura democrática.

E é por isso que aquela conversa com minha ex-aluna foi tão importante. Ela me lembrou do que, no fundo, sempre soube: não importa o cargo ou a função que ocupemos, ser jornalista é, de alguma forma, defender um sistema de valores.

Nosso trabalho não se resume a receber um pagamento ao final do mês; estamos, ainda que inconscientemente, praticando um tipo de fé. Não religiosa, nem mística, mas cidadã. E sempre democrática.

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Diogo A. Rodriguez
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Written by Diogo A. Rodriguez

jornalista, criador do meexplica.com, especialista em #tecnologia #ciencia #politica #democracia

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